Quinta-feira, 27 de Março de 2008

#16 - abocalipse

            Podem dizer, e com razão, que ando a apanhar o gosto mas tenho mais uma confissão a fazer. Depois de ter falado numa “experiência” pessoal a semana passada, esta semana quero falar de um “problema” pessoal. Certo, alguns “problemas” pessoais levam a “experiências” pessoais mas este problema é só uma gigantesca e péssima “experiência” de que eu falo sem “problemas”. Adoro jogos gramaticais.  

            A “irritação” é um estado emocional, ou de espírito, que provêm maioritariamente de distorções ou más interpretações pessoais de certas coisas. Por exemplo, pode-se dizer “Aquele gajo irrita-me”, sendo que aquele “gajo” pode não irritar à pessoa a quem isto foi dito, muito menos à sua própria mãe. Pode-se dizer ainda “Irritam-me filmes longos” mas é importante pensar que há um realizador que fez o filme assim e a quem este não irrita de certeza. Deixe-se lá o Manoel de Oliveira em paz, se faz favor. Esta dualidade, este carácter pessoal de uma “irritação” leva-me a falar da minha, porque sim, eu tenho uma irritação especial e pessoal. Há quem tenha sinais de nascença ou caracóis, eu tenho uma irritação. E quero partilha-la com vocês, porque me sinto o único no mundo que a adoptou.

            Imaginem uma sala vazia. Não vazia do estilo “Assaltaram-me, meus deus, o que é feito do meu plasma?”, mas sim vazia de pessoas. Vocês estão lá no meio, sentados numa bela cadeira, quietos, em silêncio. Uma outra pessoa entra nessa sala com um pacote de batatas fritas na mão. Vocês não têm qualquer problema com esta pessoa. Ela pode ser o vosso pai, mãe, mulher, vizinho ou estrela de cinema favorita. Pode ser mesmo qualquer pessoa no universo. Mas que tenha mãos e que consiga segurar um pacote de batatas fritas, para o bem do exemplo. No silêncio e calma da sala onde vocês estão, essa pessoa começa a deglutir batatas fritas ao vosso lado, directamente do pacote. Na cadeira ao lado. Mesmo ao lado. Vocês estavam descansados, sentados, a fazer o que quer que seja que se faz em cadeiras sentados e descansados, e essa pessoa sentou-se ao vosso lado a matar a fome. O problema agora é que essa pessoa ou tem problemas de atenção ou tem de mudar de dentista.

            Eu sei que “comer” é um acto fulcral na nossa vida e não posso negar que também o faço, mas a verdade é que eu não “rumino”. Eu quando como gosto de manter o concerto em si bemol que a comida faz na minha boca para mim e não o partilho com o mundo em colunas stereo, como este gajo das batatas fritas. Comer pipocas, batatas fritas, nozes, bolachas, rebuçados, sugos, cereais de pequeno-almoço, alimentos assim singulares e duros, esses grandes sacanas, faz um barulho descomunal. Há indivíduos, da raça dos ursos obviamente, que gostam de partilhar a degustação com a sala onde estão, não deixando ninguém de fora. Irrita-me estas pessoas que não sabem pressionar um lábio contra o outro enquanto mastigam. Mas isto não fica só pelas pessoas de “guela a apanhar ar”. Coitadas, com razão vão alegar que os alimentos que estão a ingerir fazem barulho por si, mesmo de boca fechada. A batata frita que a pessoa ao vosso lado está a comer é exemplo disso. Mas a verdade é que, como disse antes, esta irritação é “minha”. Aqui a culpa já não é de ninguém senão só e apenas minha. Tenho problemas, e depois?

            O barulho do mastigar, engolir, ranger, trincar, sorver, rasgar, empapar, palitar e afins culinários são bandas sonoras que me tiram do sério e que me levam a ter tiques subconscientes que outras pessoas depois não suportam. A dita irritação põe-me desconfortável e faz-me eriçar os pelos dos braços, ranger os dentes, estalar os dedos, tiques estes que não só inconscientemente me descontraem, vá-se lá saber porquê, como são elas próprias “irritações adoptadas” de outras pessoas. É um gigantesco ciclo vicioso de destruição que sem dúvida nenhuma vai levar ao apocalipse mais cedo ou mais tarde. Portanto façam barulho a comer se quiserem, se isso vos faz felizes, saibam é que vão acabar com o mundo. É só para que tenham consciência dos vossos actos.

Porque partilho isto com vocês? Porque bater nas teclas do portátil faz barulho. Barulho esse que tolda em vários decibéis o barulho das pessoas que estão à minha volta. A comer. Sim, é verdade, estou a escrever neste exacto momento para não me irritar com a mastigação de quem me rodeia nesta sala. Pode parecer esquisito, mas qualquer psicólogo vai ficar feliz de saber que canalizo as minhas irritações para um teclado. Podia bater em professores porque não me devolvem o telemóvel. Prefiro fazer barulho. Mais barulho. Até que o mundo acabe. Ou então aquelas batatas fritas.

 

Guilherme Fonseca

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publicado por Guilherme Fonseca às 02:59
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